A Bíblia é a Palavra de Deus?

Considero quase impossível alguém ler a Bíblia e não reparar que ela contém incoerências e contradições e ensina perversidades. Por que, então, os seguidores do livro da capa preta justificam, quer dizer, desculpam tudo o que nele é errado e mau? Porque têm medo. Note, caro leitor, que quem tem medo de criticar a Bíblia Sagrada não tem medo de criticar, por exemplo, o Alcorão Sagrado, apesar de ele igualmente garantir ser de origem divina. Após serem (através de doutrinação infantil) levados ou (através de persuasão) induzidos a aceitar a Bíblia como Palavra de Deus, seus seguidores são (através de ameaças de castigo) por ela mesma inibidos de criticá-la: duvidar do livro da capa preta seria duvidar do próprio Deus — e reservar lugar no lago de fogo e enxofre.
Para escrutinar a Bíblia racionalmente, é necessário perder o medo, e para perder o medo, é necessário que haja interrupção da lavagem cerebral a que o crente é submetido e à autossugestão a que ele mesmo se submete. Quando se deparam com os absurdos da Bíblia, muitos cristãos têm dúvida sobre se é de origem divina. Lembrando-se, porém, das ameaças de castigo, sufocam a dúvida. Aqueles que a permitem, gradualmente se distanciam da igreja, a principal fonte de lavagem cerebral. Esse distanciamento lhes possibilita perder o medo e reconhecer que a Bíblia contém incoerências e contradições e ensina perversidades.
Números 25 é um excelente exemplo de reunião dum monte de coisas erradas num só capítulo da Bíblia: preconceitos, primitividades, intolerância, absurdos, perversidades, fanatismo, violência, genocídio, vingança e contradições. Só lavagem cerebral e indução de medo são capazes de fazer alguém desculpar essas coisas. O relato começa dizendo:

Quando os israelitas estavam acampados no vale das Acácias, os homens começaram a ter relações com as mulheres moabitas. Elas convidavam o povo para as festas em que eram feitos sacrifícios aos seus deuses. E os israelitas tomavam parte nos seus banquetes e adoravam os seus deuses. Assim, os israelitas se reuniram para adorar o deus Baal-Peor, e por isso o Senhor Deus ficou muito irado com eles.

Como disse Vinicius de Moraes, na canção Testamento, “as mulheres são muito estranhas, muito estranhas”. Em Números 25, salta aos olhos e é confirmada a forma negativa como o sexo feminino geralmente é retratado na Bíblia. Nela, mulheres costumam ser astuciosas, sedutoras, lascivas. O livro de Provérbios contém dezenas de advertências aos homens para não caírem na lábia das mulheres. Uma delas diz: “A beleza na mulher sem juízo é como uma joia de ouro no focinho de um porco”. Qualquer semelhança entre as mulheres de Números 25 e Eva, que fez Adão cair em pecado, não é mera coincidência. Em 1 Timóteo 2, o apóstolo Paulo afirma que as desgraças do mundo são inteiramente culpa da mulher. Ela é que foi fraca e deu ouvidos à cobra falante, e não o homem, que, apesar de saber que a mulher estava cometendo uma tremenda duma imbecilidade, apenas a seguiu por amor. No capítulo 25 de Números, os homens de Israel sacrificavam a outros deuses por amor às mulheres que os seduziram.
Note, caro leitor, que o deus do livro da capa preta não tinha coisa alguma contra sacrifícios de animais. Muito pelo contrário: ele até os exigia. A Bíblia diz que Javé adorava o aroma dos churrascos que lhe eram oferecidos em altares. Tente imaginar: o criador de dois trilhões de galáxias precisava e gostava do cheiro de carne queimada. Se isso não é prova de que Javé é um deus primitivo, igual a qualquer outro deus de qualquer religião politeísta, não sei o que é.
A propósito, se Javé é o único deus, por que ficava fulo de raiva quando israelitas adoravam outros deuses, isto é, deuses falsos? Aqui, temos uma divindade que é tão segura de si, mas tão segura de si, que morre de ciúmes de divindades que nem sequer existem.
Outro detalhe: as mulheres que seduziram os homens de Israel eram estrangeiras. Na Bíblia, são muitos os relatos em que os outros povos são retratados como primitivos, bárbaros e imorais, tanto assim que Javé ordenou que fossem exterminados. Outra parte do livro de Números narra que Deus mandou os israelitas passarem ao fio da espada todos os habitantes de Midiã, país a sudeste de Israel. Após o massacre, contaram a Moisés que os soldados tiveram piedade das mulheres e crianças. Isso enfureceu o homem de Deus, que bradou: “Por que deixaram viver todas as mulheres? […] Foi por causa delas que uma praga feriu o povo do Senhor” (referindo-se à epidemia em Números 25, enviada por Deus). Moisés então mandou matar “todos os meninos e todas as mulheres”. Os guerreiros deveriam poupar só as meninas virgens. As meninas virgens eles podiam pegar para si. Lembre-se, caro leitor: essa monstruosa história está escrita não no Alcorão, mas na tal Palavra de Deus.
Voltando a Números 25, segue o relato:

Por isso o Senhor Deus ficou muito irado com eles e disse a Moisés: “Reúna os chefes do povo de Israel e os enforque diante de mim em plena luz do dia. Assim, a minha ira contra o povo de Israel acabará”.

Aqui, mais uma comprovação de que não há diferença entre o deus da Bíblia e os deuses das religiões politeístas, taxadas de primitivas, os quais enviavam castigos, pragas, pestes, inundações, etc., que só eram aplacados através de sacrifício humano. Exatamente como as divindades pagãs, Javé condicionou parar de soltar fogo pelas ventas à matança de pessoas. Números 25 diz que, após 24 mil pessoas (inocentes, pois os homens que se curvaram aos deuses de suas estrangeiras namoradas tinham sido enforcados) já terem sido dizimadas pela epidemia, Javé só parou de matar quando Fineias lhe sacrificou o último israelita herege ainda vivo. O neto do irmão de Moisés pegou uma lança, entrou numa tenda e, de uma tacada, varou um casal pela barriga.
Cristãos acham terrível crianças lerem um livro com um desenho de dois homens se beijando, mas acham perfeitamente natural crianças lerem um livro cheio de selvagerias, como cravar pessoas no chão. Perto da Bíblia, o mais horripilante filme de terror é comédia.
Pouca gente sabe que o mandamento “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” vem não do Novo Testamento, mas do Velho. Em Levítico 19, está escrito:

Não guardem ódio contra o seu irmão no coração; antes repreendam com franqueza o seu próximo […]. Não procurem vingança, nem guardem rancor contra alguém do seu povo, mas ame cada um o seu próximo como a si mesmo.

Quem conhece a Bíblia sabe que esse mandamento nunca foi obedecido, nem mesmo por seu próprio criador. Quando Javé era trocado por outros deuses, não se perdia tempo com “repreender com franqueza”: Deus exigia execução imediata. Em Deuteronômio 13, o mesmo deus que, com seu próprio dedo, escreveu numa tábua de pedra a lei “Não matarás” ordena que seus adoradores matem os próprios pais, irmãos e filhos que se converterem a uma outra religião. Justamente por isso, cristãos não tiveram problema algum com passar séculos perseguindo, torturando, enforcando, esmagando, afogando e queimando seguidores de outras religiões e até de Jesus. Os Trinta e Nove Artigos de Religião, redigidos em 1562 e, como sua própria introdução admite, baseados na Palavra de Deus, ainda hoje constituem as doutrinas oficiais da Igreja da Inglaterra, que é protestante. O artigo 37 diz: “É lícito a cristãos usar armas e servir em guerras” e “As Leis do Reino podem punir cristãos com a morte”.
Note, caro leitor, que Deus não mandou Fineias pegar a lança, entrar na tenda e atravessar o casal de hereges. Javé ordenara que as execuções, na forma de enforcamentos, fossem públicas. O neto de Arão fez isso porque quis, motivado por amor a Deus. No relato, a ação de Fineias é realçada como heroica. Ele, como se diz em inglês, went the extra mile, quer dizer, foi além do esperado. Através desse esforço extra, Fineias se destacou dos demais. Se eliminar pagãos fosse pecado, Deus teria castigado, no mínimo repreendido, o sobrinho-neto de Moisés. O que ocorreu foi justamente o contrário. Varar um casal com uma lança fez de Fineias o queridinho de Javé, que o exaltou como Salvador da Pátria, dizendo:

Fineias fez com que terminasse a minha ira contra o povo de Israel. Fineias é como eu: não tolera a adoração de outros deuses além de mim. Por causa do que Fineias fez, eu, na minha ira, não destruí os israelitas.

Mais tarde, o furador de barrigas foi condecorado com o posto de sumo sacerdote. Ou seja: barbaridade foi o que qualificou Fineias a se tornar o mais honrado homem de Deus, exemplo máximo de moral e santidade para toda a nação. Provando que cristãos acham normal matar hereges, a Igreja Católica Ortodoxa tem Fineias como santo e o comemora no dia 2 de setembro. Amém?
O relato termina com Javé, sedento por vingança, exigindo mais derramamento de sangue, dessa vez indiscriminado. O deus da Bíblia não fazia distinção entre culpados e inocentes. Seus castigos assolavam sempre toda a população duma região ou país, que obviamente é constituída também de idosos, crianças e enfermos. O maior exemplo disso é o Dilúvio. Em vez de fazer os homens ímpios simplesmente terem um fulminante infarto e caírem duros no chão, o ser mais inteligente — e amoroso — do Universo afogou todos os seres vivos não aquáticos de todo o planeta. Por causa de algumas mulheres sedutoras, em Números 25 Deus ordenou que a nação vizinha fosse destruída por completo. Como de costume, também homens e mulheres inocentes, idosos, crianças e enfermos foram passados ao fio da espada.
Histórias bíblicas como essa constrangem muitos cristãos modernos. Afinal, é necessário ser bárbaro para aprovar barbaridades. Forçados a justificar os barbarismos da divindade que adoram (do contrário, perderiam a fé), para eles elaboram as mais variadas evasivas, que costumam ir de “Ah, isso era naquela época!” a “Quem somos nós para criticar Deus?”. Uma das mais estapafúrdias e que recentemente ouvi é: “Mas Paulo, esses relatos não retratam Deus como ele realmente é”. Claramente, esse crente tenta se distanciar dos horrores cometidos e ordenados pelo deus da Bíblia separando o que dela seria bonito do que dela seria feio. As passagens em que Deus solta fumaça pelas ventas não seriam, portanto, de inspiração divina, mas fruto da imaginação de mentes primitivas. Inspiradas por Deus seriam só as partes em que ele é retratado como um paizão tranquilo e calmo. É hilário, pois até ao século XVII um cristão que afirmasse isso seria considerado herege e queimado em praça pública por outros cristãos. Ora, se histórias como a de Números 25 distorcem Deus, então mentem sobre ele, e se mentem sobre ele, por que estão em sua Palavra? É precisamente por causa de relatos como esse que cristãos passaram séculos se vendo no direito e até dever de cometer as atrocidades que cometeram.
A explicação mais simples é a mais provável. Em face de tudo que há de errado com a Bíblia (imoralidades, crueldades, contradições, etc.), da total ausência nela de revelações realmente úteis para a Humanidade, das inúmeras guerras que por causa dela foram travadas, com milhões de mortos, das divisões que ela causa, com milhares de denominações cristãs mutuamente se ridicularizando e inclusive combatendo, da hostilidade que ela gera contra religiões afro-brasileiras e do preconceito e até ódio que ela em muitos de seus seguidores provoca, a ponto de, por interrupção da gravidez, xingarem de assassina uma menina de dez anos que foi estuprada desde os seis (fato ocorrido no Espírito Santo, em 2020), a explicação mais simples é: esse amontoado de cópias de cópias de mais cópias de farrapos de fragmentos de pergaminhos da Idade do Ferro com historinhas também da Idade do Bronze, mais conhecido como Bíblia, não é a Palavra de Deus — a menos que o criador de dois trilhões de galáxias seja incompetente e sádico.

“Religião é a melhor forma de dominação. Os relatos bíblicos sobre a ira de Deus são tão cruéis que não é preciso ser um gênio para perceber que foram inventados com o propósito de amedrontar. Um povo amedrontado é facilmente controlado.”
— Paulo Bitencourt